Sunday, June 18, 2006

Vitrúvio em português

Isabel Salema

O sonho de um arquitecto no mundo greco-romano - a glória de erguer uma cidade - foi alcançado por Dinócrates ao construir Alexandria. E como é que o arquitecto grego conseguiu que Alexandre Magno lhe encomendasse o plano de construir uma nova cidade no Egipto? "Era, com efeito, de grande estatura, de belo rosto e de presença digna. Confiado, pois, nestes dons da natureza, deixou as vestes nos seus aposentos, ungiu o corpo com óleo, coroou a cabeça com um ramo de choupo, cobriu o ombro esquerdo com uma pele de leão e, levando na mão direita uma clava, entrou no tribunal do rei, quando este administrava justiça." O espectáculo de Dinócrates vestido de Hércules "despertou a atenção de todos" e Alexandre Magno perguntou quem era. O arquitecto respondeu: "Sou Dinócrates, arquitecto macedónio, que trago ideias e projectos dignos da tua celebridade."

Parece uma história demasiado boa para ser verdade. Mas Dinócrates não é uma invenção do escritor romano Vitrúvio, porque o seu nome já aparece num papiro de finais do século II a.C., antes de o tratado de arquitectura ter sido escrito. O episódio em redor da construção de Alexandria foi provavelmente bebido noutra fonte greco-romana. "Pode ser verdade ou não.

Algumas das histórias que conta terão sido lidas em textos gregos, helenísticos e mesmo romanos. Vitrúvio cita vários autores, mas a maior parte destes textos desapareceu", diz Justino Maciel, historiador da arte e autor da tradução do "Da Arquitectura" de Vitrúvio, a primeira feita em Portugal directamente do latim, uma obra escrita no século I antes da nossa era e agora editada pela IST-Press, a editora universitária do Instituto Superior Técnico.

É o próprio Vitrúvio que fala das suas fontes. Por exemplo, no sétimo dos dez "Volumen" do tratado - o que corresponde a um rolo no texto romano -, quando o escritor aborda os autores gregos e romanos de livros de arquitectura: "Eu recolhi, de entre os seus comentários, o que me pareceu mais útil para estes apontamentos, havendo muitos livros publicados pelos Gregos neste campo, sendo poucos os que existem entre nós."

Antes de Vitrúvio e dos seus contemporâneos, sobreviveram pequenos textos que abordam algumas questões de construção, como é o caso das construções rurais de Varrão, um autor romano citado por Vitrúvio. Mas o "Da Arquitectura" é o único tratado de arquitectura da Antiguidade Clássica a chegar até hoje. "Na antiguidade tardia, há os tratados de Faventino e de Paládio (não confundir com o do Renascimento), que seguem de perto o de Vitrúvio e são muito mais pequenos."
Por isso, na nota de apresentação da edição da IST-Press, o historiador da arte Paulo Varela Gomes diz que a publicação do tratado "representa um acontecimento histórico para as culturas da arquitectura e da engenharia em Portugal e uma iniciativa cultural de grande relevo".

Um tratado para Augusto

O episódio do belo Dinócrates vestido de Hércules serve também a Vitrúvio para falar de si: "A mim, porém, ó Imperador, não ofereceu a natureza boa aparência, a idade desfeou-me o rosto e a doença me subtraiu as forças. E porque estou privado destes apoios, espero conseguir a tua recomendação através dos méritos da ciência e através destes escritos." O imperador é Augusto, para quem este engenheiro militar e arquitecto escreveu o tratado, já reformado, depois de uma vida ao serviço do Exército romano como engenheiro militar.

Apesar de o tratado "Da Arquitectura", escrito provavelmente entre 35 e 20 a.C., ser uma obra muito pragmática, os heróis divinizados não estão ausentes e emergem para explicar a origem da ordem dórica, a primeira e a mais simples das ordens arquitectónicas: "Doro, filho de Heleno e da ninfa das águas, Ftia, reinou sobre a Acaia e todo o Peloponeso e edificou em Argos, cidade antiga, o lugar sagrado de Juno, casualmente deste estilo, em forma de templo."

Mas o sistema proporcional de medidas da ordem dórica, que caracteriza todo um edifício, surgiria mais tarde, dando Vitrúvio uma explicação muito mais prática. Foram os gregos que ao fundar as suas colónias na Ásia encontraram uma metodologia, relacionando a ordem dórica com o corpo masculino, a partir da planta do pé: "Tendo descoberto que o pé correspondia no homem à sexta parte da sua estatura, transferiram o mesmo para a coluna e, qualquer que fosse o diâmetro da base do fuste, elevaram-no seis vezes em altura incluindo o capitel. Deste modo, a coluna dórica começou a mostrar nos edifícios a proporção, a solidez e a elegância de um corpo viril."

O mesmo aconteceu com a ordem jónica, mas desta vez com o corpo feminino: "Da mesma maneira levantaram depois um templo a Diana, procurando uma forma de novo estilo [...], levando para lá a delicadeza da mulher e dispuseram em primeiro lugar o diâmetro da coluna segundo a oitava parte da sua altura, a fim de que ela apresentasse um aspecto mais elevado."
Justino Maciel considera essa leitura de Vitrúvio muito interessante, sublinhando que é fácil, como escreve o autor romano, ver nas volutas do capitel jónico "caracóis enrolados pendentes de uma cabeleira". E Vitrúvio continua: "Assim, lograram a invenção de dois tipos discriminados de colunas, uma viril, sem ornamento e de aparência simples, a outra, com a subtileza, o ornato e a proporção femininas."

Esta história sobre a origem das ordens, diz Justino Maciel, "é a demonstração do "teorema" de que o corpo é a medida de todas as coisas na arquitectura da Antiguidade Clássica". Só depois de ler Vitrúvio é que o historiador da arte percebeu que o umbigo é o centro do corpo e que medimos o mesmo com os braços abertos, de uma ponta à outra, do que em altura, como descreve o autor: "Acontece que o umbigo é, naturalmente, o centro do corpo; com efeito, se um homem se puser deitado de costas com as mãos e os pés estendidos e colocarmos um centro de compasso no seu umbigo, descrevendo uma circunferência, serão tocados pela linha curva os dedos de qualquer uma das mãos ou dos pés."

E Justino Maciel aponta para o desenho do Homem Bem Configurado, uma das quase 80 ilustrações que acompanham o livro, feitas por Thomas Noble Howe para a edição da Cambridge University Press e que a edição portuguesa volta a publicar, porque os desenhos originais de Vitrúvio desapareceram. "A maior parte das pessoas que vê este desenho pensa que é de Leonardo da Vinci", afirma Justino Maciel, uma vez que o tratado de Vitrúvio foi redescoberto no Renascimento, altura em que se fizeram as primeiras traduções. Uma delas foi encomendada por D. João III ao matemático e cosmógrafo Pedro Nunes, mas nunca foi publicada e não há a certeza de ter sido realizada.

A tradução dos dez livros que compõem o tratado de arquitectura de Vitrúvio começou a ser feita em 1986, altura em que Justino Maciel se tornou assistente do Departamento de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Tinha de dar seminários aos alunos do mestrado em História da Arte e pensou que era importante pô-los em confronto com o texto clássico: "Vitrúvio, escrito ainda antes de Cristo, é o texto fundamental como fonte da arquitectura das ordens, dos edifícios públicos e privados, do urbanismo."

Primeiro dicionário vitruviano

O que sabemos da Antiguidade Clássica, diz o professor, vem, sobretudo, dos textos de divulgação ou ensaio histórico, escritos entre o século XIX e XXI: "É raríssima a investigação directamente sobre os textos clássicos, gregos ou latinos, mesmo traduzidos. Só podemos falar do texto com total segurança se o lermos na sua língua original."

Para fazer a tradução do latim, Justino Maciel apoiou-se principalmente no manuscrito mais antigo até hoje conhecido, o chamado "Harleianus", datado do século IX e guardado no Museu Britânico, em Londres. O historiador seguiu a edição de F. Granger (1931-34), mas sempre que necessário recorreu a outros manuscritos, nomeadamente o W e V, guardados na Biblioteca Apostólica do Vaticano e editados pela Collection des Universités de France.

"Uma edição de Vitrúvio nunca se esgota, porque cada termo técnico levanta questões. Há palavras que só Vitrúvio é que usa. É uma arqueologia do texto." Sempre que há um termo técnico, Justino Maciel optou por colocar em nota de rodapé a palavra original em latim e defini-la, construindo um primeiro dicionário português dos termos vitruvianos. "É uma forma de contornar o facto de a edição não ser bilingue e de ir ao encontro do destinatário principal, pessoas sem formação clássica, que não sabem latim."

No tratado de Vitrúvio, quase tudo o que é arquitectura das ordens é ainda grego, apesar de o autor dizer que no seu tempo estava a ensaiar vários capitéis novos, como os da ordem toscana. "Nas termas, nos teatros, já contrapõe o costume grego ao romano. Em grande parte, o teatro romano deve a Vitrúvio a sua forma última. É natural que houvesse outros contributos, outras propostas, mas a leitura de Vitrúvio foi a única do período clássico que chegou até nós e quando se olha para o teatro romano é possível encontrar as propostas de Vitrúvio." Por exemplo, o pórtico, a colunata coberta, atrás da cena, é exclusivamente romano: "Não existe no teatro grego e Vitrúvio trata-o em pormenor. Em alguns casos, tem o mesmo tamanho que o próprio teatro. Em tempos de paz servia para abrigar da chuva, em tempo de guerra, de cerco, para armazenar madeira, o combustível." Uma novidade, portanto, com impacto no desenho da cidade.

A razão da natureza

O urbanismo de Vitrúvio é também já orientado, mostrando a racionalidade de viver de acordo com a natureza: "Há dois tipos de urbanismo na Antiguidade Clássica: o hipodâmico, ortogonal; e o etrusco-itálico, que é também ortogonal mas tem a particularidade de ser orientado, segundo as linhas do cardo e do decomano. A linha decomana, este-oeste, obtinha-se logo de manhã pelo nascer do sol." Por isso, acrescenta Justino Maciel, através da linha decomana, é possível saber em que altura do ano a cidade foi fundada.

Entre as cidades portuguesas do Império Romano, não há nenhuma fundada pelos romanos, diz o autor da tradução, mas em Conímbriga ou em Évora é possível encontrar nos monumentos a aplicação do módulo vitruviano, "surpreendendo-nos por vezes a evidência da sua presença, mesmo em realizações afastadas do centro do Império", escreve Justino Maciel na introdução.
O autor da tradução diz que nasceu no campo, no tempo dos carros de bois, do arado, das lamparinas de azeite, de uma vivência à romana. "Tive uma certa introdução na infância à terminologia artesanal. Na história da arte, só conhecendo a linguagem dos pedreiros e dos carpinteiros é que conseguimos hoje dar certos nomes às coisas, como o chedeiro, a caixa do carro de bois." Arquitecto, aliás, quer dizer carpinteiro principal: "Esse nome ficou e ninguém hoje imagina isso."
#

0 Comments:

Post a Comment

<< Home