Friday, June 30, 2006

Nuno Crato responde à ministra da Educação

Director: José Manuel Fernandes
Directores-adjuntos: Nuno Pacheco e Manuel Carvalho
POL nº 5938 | Sexta, 30 de Junho de 2006

Nuno Crato responde à ministra da Educação A importância da palavra "ensinar"

Numa entrevista a Clara Viana saída na revista Pública em 18 de Junho, ao discutir a recente proposta de mudanças do Estatuto da Carreira Docente não universitária, afirmei que "curiosamente a palavra "ensinar" não aparece uma única vez no documento, que tem 55 páginas". É um facto tão difícil de entender que a própria ministra da Educação, professora Maria de Lurdes Rodrigues, não acreditou ser verdadeiro e possivelmente pensou tratar-se de um exagero retórico meu.

Questionada pela revista Visão (22 de Junho), disse "Não é verdade. Aparece várias vezes." Com os meios informáticos actuais é muito fácil esclarecer o problema. O ficheiro PDF do documento, que, no momento em que escrevo (29 de Junho), é ainda o mesmo, pode ser pesquisado usando a função "search". Introduzindo a palavra "ensinar" verifica-se que ela não aparece uma única vez.

Várias pessoas, entretanto, fizeram outras pesquisas. Verificaram que a palavra "ensino" aparece, mas essencialmente como qualificativo oficial (por exemplo, "estabelecimento de ensino", "ensino Básico"). Verificaram também que a palavra "aprendizagem" aparece 13 vezes, no singular e no plural. Estas estatísticas seriam ociosas se não reflectissem uma orientação pedagógica vincada, que transparece nas partes mais técnicas e ideológicas do documento.

Assim, por exemplo, quando se refere as funções dos professores (Art. 36.º, 2), não se fala em ensinar, mas sim em "identificar saberes e competências-chave dos programas", "desenvolver situações didácticas" e criar "situações de aprendizagem". Enumera-se depois um conjunto extenso de deveres do docente, tais como "Trabalhar em equipa", "Colaborar com as famílias" e "conceber respostas inovadoras às novas necessidades da sociedade do conhecimento".

É difícil acreditar, eu sei, mas o documento está no portal do ministério, indicado logo na página de entrada (www.min-edu.pt).


Nuno Crato
Instituto Superior
de Economia e Gestão
Presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática

Sunday, June 25, 2006

O inimigo externo

Director: José Manuel Fernandes
Directores-adjuntos: Nuno Pacheco e Manuel Carvalho
POL nº 5933 | Domingo, 25 de Junho de 2006

O inimigo externo
Guilherme Valente

1.A avaliação é imperativa. Ninguém a tem defendido mais persistentemente do que nós. Avaliação dos professores, da escola, do sistema, geral (desde logo permitindo a todos os pais escolherem a escola dos filhos, pública ou privada). Mas o projecto de avaliação dos professores implicando os pais seria a medida mais insensata de que alguém se poderia lembrar se não fosse, como é, um expediente demagógico para desviar a atenção do país da questão central da educação - a ideologia igualitarista e, ramos da mesma genealogia, as teorias pedagógicas delirantes impostas totalitariamente que transformaram a escola numa escola de faz de conta. Seria mais uma acha na fogueira da desvalorização da ensino, do descrédito e da humilhação dos professores, ferindo também aqueles que fazendo o impossível em condições tão adversas continuam a salvar muitos alunos.

2. O que aconteceu é que a voz livre e persistente de meia dúzia de cidadãos tornaram impossível aos ministérios continuarem a fazer o que sempre fizeram: ocultar a tragédia. Que fazer, perguntaram-se agora a ministra, o secretário de Estado e a nomenclatura dos "especialistas"? A táctica escolhida é antiga, sinistra, reveladora: arranjar um inimigo externo. Os professores.

É claro que os professores têm responsabilidade na tragédia dos resultados. Mas não são uma ilha. Quem é responsável pela sua formação, permitindo que não dominem as matérias que devem ensinar? Quem os recruta? Quem determinou as regras que regem a escola e fomentou a cultura que a domina? Quem impôs e mantém o inqualificável modelo de gestão que a "governa"? Quem centralizou o sistema até ao ridículo? Quem tem desvalorizado a função da escola como transmissora do conhecimento? Quem impôs teorias, métodos e ambiente que impedem milhares e milhares de crianças de aprenderem a ler, escrever e contar?

Quem tem imposto um ensino em que todos os saberes valem o mesmo? Quem desvalorizou ou permitiu que se desvalorizasse o papel dos professores, apagando a função principal que deve ser sua - ensinar? Quem esmaga e tolhe os docentes com toneladas de papéis? Quem, aceitando-a e elogiando-a, tem encorajado a indisciplina, semente da violência? Quem fomentou a desresponsabilização dos alunos, nomeadamente acabando com os exames e tornando inócuos aqueles com que ainda não se atreveram a acabar? Quem encomendou e aprova programas impraticáveis e imbecis e manuais equivalentes? Quem promoveu as teorias pedagógicas delirantes do ensino centrado no aluno, do aprender a aprender, a demagogia miserável do "todos os alunos têm jeito para os estudos", que expulsa do sistema educativo, em cada ano, milhares de jovens a cujos interesses, desejo de formação e aspirações esta escola não responde?

3. Não é significativo que o termo ensinar nunca surja no projecto do estatuto da carreira docente?
E que dizer da decisão de se acabar com os TPC porque, no dizer da ministra, "os trabalhos de casa são sobretudo uma forma de reprodução das desigualdades sociais" "decorrente de alguns alunos terem pais que podem e conseguem ajudá-los e outros não os terem"? Por que não, senhora ministra, colocar os meninos com pais capazes de os ajudarem nos TPC num albergue, instalado de preferência num dos bairros onde a polícia prefere não ter de entrar? Ou prender os pais? Ou matar os meninos - que surgem em todos os grupos sociais - que revelem ou tenham a oportunidade de revelar qualidades e talentos num grau que para o eduquês parece ser condenavelmente superior?

Falemos a sério: por que não fazer muito simplesmente o que, apesar da hipócrita preocupação com os mais desfavorecidos, imperdoavelmente ainda não foi feito? Isto é, dar a todos as mesmas melhores oportunidades, ou seja, proporcionar aos alunos dos meios sociais e culturais mais desfavorecidos o apoio que não tenham em casa e os outros terão. Sem retirar a estes o que é excelente que tenham e deverá a todos ser oferecido. Ou seja: quem não tem apoio em casa deveria passar a tê-lo na escola, sendo essa necessidade muito fácil de indagar - pobres ou ricos, porque a realidade não é como na sua cegueira ideológica a senhora ministra, ou quem pontifica ou a comanda, esquizofrenicamente julga. Não é, senhor professor Cavaco Silva?

Existe, como se sabe, uma vasta bibliografia consagrada ao estudo e à tentativa de explicação do fanatismo ideológico. Mas, na Europa, em Portugal, no ano de 2006, depois de tudo o que se sabe como explicar enormidades destas? Não terá o senhor presidente da República prerrogativas ou influência que lhe permitam travar o que já só pode ser visto como uma tara? A culpa é dos professores?
Repito: sem varrer o eduquês, sem varrer os especialistas sem emenda do ministério, não haverá sucesso educativo.

4. Corre por aí que quem comanda é o secretário de Estado. Peço por isso à senhora ministra que esclareça o país: subscreve a ideologia igualitarista que encharcou a escola, mediocrizando todos? Identifica-se com as pedagogias delirantes que continuam, de acordo com todos os indicadores, a cretinizar os alunos portugueses? Sim ou não, senhora ministra? Mais: para que tipo de sociedade quer preparar os nossos filhos? Para uma sociedade totalitária de súbditos e de miséria ou para uma sociedade livre e plural de cidadãos em que, como afirmava Bergson, a inteligência e a vontade dos homens possam ser fonte de imprevisível e fecunda novidade?

5. Títulos não são argumentos. António Borges ostenta muitos títulos e ex-títulos, mas não tem razão. Excitado, porventura, com a guerra da ministra aos sindicatos, na matéria só afirmou o óbvio e viu a aparência.

Editor da Gradiva

Friday, June 23, 2006

Vamos aumentar o descalabro?

Director: José Manuel FernandesDirectores-adjuntos: Nuno Pacheco e Manuel Carvalho
POL nº 5931 Sexta, 23 de Junho de 2006

Vamos aumentar o descalabro?
Maria de Fátima Bonifácio

Opaís ficou chocado com a reportagem exibida pela RTP1 a 30 de Maio sobre uma escola na periferia de Lisboa que mais se assemelhava a um depósito de delinquentes. Não vale a pena relembrar as imagens. Mas vale a pena sublinhar que o secretário de Estado presente no debate que se seguiu não teve uma palavra de apreço pelos professores que enfrentam diariamente aquele martírio. Ao contrário do que este governante tentou inculcar, a "escola" em questão não constitui caso único: constitui apenas um de demasiados casos extremos para que ninguém parece ter solução. E, no entanto, a responsabilidade do ministério é aqui límpida e irrefragável.

O Estado tem, como qualquer empregador, a obrigação legal de garantir a segurança física dos que para ele trabalham. Manifestamente, não cumpre tal obrigação. Em 2005, os casos de professores agredidos pelos alunos ultrapassaram largamente o milhar: mais de três por dia.

Escolas como aquela que nos foi mostrada são casos de polícia, e só com um polícia ao lado é que os professores se deviam prestar a lá dar aulas.Infelizmente, o problema da disciplina nas escolas não se cinge aos casos extremos em que ela assume a forma de pura violência. Em todas elas, independentemente das zonas onde estão implantadas, se verifica mais ou menos a existência de uma indisciplina larvar, insidiosa, que subverte por completo o ambiente de ordem e tranquilidade absolutamente indispensável à aprendizagem.

Em todas elas os professores são desrespeitados, insultados e vêem todos os dias a sua autoridade escarnecida por crianças e adolescentes totalmente falhos da mais elementar educação e totalmente desprovidos da mais básica noção de dever. Conheço professores que dão aulas no centro de Lisboa e nem assim se atrevem a estacionar o carro nas imediações da escola, por receio de que lhes furem os pneus ou vandalizem os automóveis.

Para as gerações actuais, a escola é uma "seca" e, sendo assim, nada mais justo e natural, para as cabeças das angélicas criancinhas, do que fazerem dela um recreio permanente. Em suma: a indisciplina que grassa hoje em dia nas escolas torna radicalmente impossível ensinar lá o que quer que seja. Anos e anos - décadas ! - de pedagogia romântica, assente no pressuposto de que as crianças são vítimas inocentes de uma sociedade repressiva e de que albergam na pureza dos seus espíritos imaculados tesouros de intuição e até de sabedoria ainda não contaminada pelo cinismo do mundo, mergulharam a escola numa anarquia.

As pedagogias libertárias de finais da década de 60 - "é proibido proibir" - pegaram de estaca num país dominado por uma cultura cívica e política esquerdista, que prega a irresponsabilidade individual e só aponta o dedo à responsabilidade social. Ao longo dos anos e das décadas, o Ministério da Educação encarregou-se de esvaziar as escolas e os professores das suas competências disciplinares, na crença idiota de que os meninos e as meninas se poderiam corrigir com doçura, através de bons conselhos e benignas acções de recuperação.

As punições foram praticamente abolidas. Alunos com 20 e mais participações disciplinares não são expulsos. Quando se abrem inquéritos, os alunos são ouvidos em pé de igualdade com os professores; ao cabo de vários meses redundam, na melhor das hipóteses, numa suspensão - que não conta para as faltas dadas: os prevaricadores são presenteados com alguns dias ou uma semana de férias.

Em suma, a indisciplina na escola tem medrado a coberto da mais completa impunidade. Muito me espanta que o actual Ministério da Educação, que tem sido justamente louvado pelo esforço sério e sem precedentes para identificar e atalhar os factores do insucesso escolar em Portugal, não tenha até agora feito uma referência ao problema da indisciplina que mina e inutiliza a escola como lugar de transmissão de conhecimentos.

Não basta denunciar a falta de orientação das escolas e dos professores para os resultados dos seus alunos. Nem chega denunciar o espírito burocrático-administrativo que prevalece sobre um real empenhamento num trabalho colectivo tendente a minorar os problemas dos alunos com maiores dificuldades. E o diagnóstico do insucesso escolar também não se esgota na denúncia das pequenas e grandes corrupções em torno da distribuição de turmas e horários. Tudo isto existe e conta, sem dúvida, e não se vê como possa ser remediado, enquanto as escolas forem governadas por conselhos executivos obrigados a agradar a quem os elegeu. Mas o ministério devia inscrever o problema da indisciplina no topo das suas prioridades, pelo simples motivo de que sem ordem e tranquilidade não há concentração nem trabalho, e sem concentração e trabalho não haverá sucesso escolar.

Ora, nunca se restaurará a disciplina, se os professores não tiverem a sua autoridade protegida pelo ministério e as escolas continuarem de pés e mãos atados para punir os alunos que perturbam a actividade escolar. Não há que fugir disto. Foi assim com espanto e consternação que tomei conhecimento de que o ministério se prepara para chamar os pais a participar na avaliação dos professores, prevista no Estatuto da Carreira Docente actualmente em discussão. Ninguém nega que a balda das avaliações como eram feitas até aqui tem de acabar.

Como têm de acabar as pseudoformações que garantiam créditos para a progressão automática nas carreiras. Apenas negam isto os sindicatos, que com o seu reaccionarismo imobilista têm contribuído mais do que ninguém para a degradação da imagem dos professores na sociedade. Mas associar os pais à avaliação dos professores parece-me a medida mais insensata e nefasta que poderia passar pelas cabeças da 5 de Outubro.

Aos paizinhos serão distribuídas "fichas de avaliação", em que se pronunciam sobre "a relação que os professores têm com as crianças". Extraordinária ideia, na verdade! Mas o que sabem eles dessa "relação" a não ser o que os filhinhos lhes contam lá em casa? E quem não sabe que os filhinhos acharão sempre que ela é péssima com os docentes mais exigentes? O secretário de Estado alega que as informações dos pais serão ponderadas com o parecer dos conselhos executivos. Fraco remédio! Basta que um aluno saiba que o docente está sujeito à avaliação do paizinho e da mãezinha para que sinta as costas quentes e redobre de insolência. Se o ministério persistir na adopção de uma medida tão absurda, carregará com a responsabilidade de ser o primeiro contribuinte para a liquidação final da autoridade do professor e, por extensão, para o agravamento da indisciplina e do consequente insucesso escolar.

E incorrerá na grave contradição de, por um lado, exigir mais trabalho e empenho aos professores - como pode e deve fazer -, retirando-lhes, por outro lado, um dos meios decisivos para cumprirem a sua missão com eficácia.A ideia de pôr os pais a avaliar os professores daria vontade de rir, se não fosse grave. Para além do que fica dito, sobram outras considerações. Grande parte dos pais que têm actualmente os filhos na escola são analfabetos ou pouco menos do que isso. Não possuem um vestígio de idoneidade intelectual para se pronunciarem sobre a qualidade dos docentes; para não mencionar os muitos que não possuem idoneidade moral. Depois, outra grande, grande parte pura e simplesmente despeja os filhos na escola e não quer saber do que lá se passa.

Em Portugal, a maioria dos "encarregados de educação", por incompetência ou desinteresse, ou ambas as coisas combinadas, vivem inteiramente divorciados da vida escolar. Só vejo vantagens em manter pais destes à distância. E não me venham com o exemplo da América ou da Finlândia, onde os pais e as suas associações se envolvem intensamente na gestão escolar: convém não esquecer que, infelizmente, estamos em Portugal.
Historiadora

Sunday, June 18, 2006

Vitrúvio em português

Isabel Salema

O sonho de um arquitecto no mundo greco-romano - a glória de erguer uma cidade - foi alcançado por Dinócrates ao construir Alexandria. E como é que o arquitecto grego conseguiu que Alexandre Magno lhe encomendasse o plano de construir uma nova cidade no Egipto? "Era, com efeito, de grande estatura, de belo rosto e de presença digna. Confiado, pois, nestes dons da natureza, deixou as vestes nos seus aposentos, ungiu o corpo com óleo, coroou a cabeça com um ramo de choupo, cobriu o ombro esquerdo com uma pele de leão e, levando na mão direita uma clava, entrou no tribunal do rei, quando este administrava justiça." O espectáculo de Dinócrates vestido de Hércules "despertou a atenção de todos" e Alexandre Magno perguntou quem era. O arquitecto respondeu: "Sou Dinócrates, arquitecto macedónio, que trago ideias e projectos dignos da tua celebridade."

Parece uma história demasiado boa para ser verdade. Mas Dinócrates não é uma invenção do escritor romano Vitrúvio, porque o seu nome já aparece num papiro de finais do século II a.C., antes de o tratado de arquitectura ter sido escrito. O episódio em redor da construção de Alexandria foi provavelmente bebido noutra fonte greco-romana. "Pode ser verdade ou não.

Algumas das histórias que conta terão sido lidas em textos gregos, helenísticos e mesmo romanos. Vitrúvio cita vários autores, mas a maior parte destes textos desapareceu", diz Justino Maciel, historiador da arte e autor da tradução do "Da Arquitectura" de Vitrúvio, a primeira feita em Portugal directamente do latim, uma obra escrita no século I antes da nossa era e agora editada pela IST-Press, a editora universitária do Instituto Superior Técnico.

É o próprio Vitrúvio que fala das suas fontes. Por exemplo, no sétimo dos dez "Volumen" do tratado - o que corresponde a um rolo no texto romano -, quando o escritor aborda os autores gregos e romanos de livros de arquitectura: "Eu recolhi, de entre os seus comentários, o que me pareceu mais útil para estes apontamentos, havendo muitos livros publicados pelos Gregos neste campo, sendo poucos os que existem entre nós."

Antes de Vitrúvio e dos seus contemporâneos, sobreviveram pequenos textos que abordam algumas questões de construção, como é o caso das construções rurais de Varrão, um autor romano citado por Vitrúvio. Mas o "Da Arquitectura" é o único tratado de arquitectura da Antiguidade Clássica a chegar até hoje. "Na antiguidade tardia, há os tratados de Faventino e de Paládio (não confundir com o do Renascimento), que seguem de perto o de Vitrúvio e são muito mais pequenos."
Por isso, na nota de apresentação da edição da IST-Press, o historiador da arte Paulo Varela Gomes diz que a publicação do tratado "representa um acontecimento histórico para as culturas da arquitectura e da engenharia em Portugal e uma iniciativa cultural de grande relevo".

Um tratado para Augusto

O episódio do belo Dinócrates vestido de Hércules serve também a Vitrúvio para falar de si: "A mim, porém, ó Imperador, não ofereceu a natureza boa aparência, a idade desfeou-me o rosto e a doença me subtraiu as forças. E porque estou privado destes apoios, espero conseguir a tua recomendação através dos méritos da ciência e através destes escritos." O imperador é Augusto, para quem este engenheiro militar e arquitecto escreveu o tratado, já reformado, depois de uma vida ao serviço do Exército romano como engenheiro militar.

Apesar de o tratado "Da Arquitectura", escrito provavelmente entre 35 e 20 a.C., ser uma obra muito pragmática, os heróis divinizados não estão ausentes e emergem para explicar a origem da ordem dórica, a primeira e a mais simples das ordens arquitectónicas: "Doro, filho de Heleno e da ninfa das águas, Ftia, reinou sobre a Acaia e todo o Peloponeso e edificou em Argos, cidade antiga, o lugar sagrado de Juno, casualmente deste estilo, em forma de templo."

Mas o sistema proporcional de medidas da ordem dórica, que caracteriza todo um edifício, surgiria mais tarde, dando Vitrúvio uma explicação muito mais prática. Foram os gregos que ao fundar as suas colónias na Ásia encontraram uma metodologia, relacionando a ordem dórica com o corpo masculino, a partir da planta do pé: "Tendo descoberto que o pé correspondia no homem à sexta parte da sua estatura, transferiram o mesmo para a coluna e, qualquer que fosse o diâmetro da base do fuste, elevaram-no seis vezes em altura incluindo o capitel. Deste modo, a coluna dórica começou a mostrar nos edifícios a proporção, a solidez e a elegância de um corpo viril."

O mesmo aconteceu com a ordem jónica, mas desta vez com o corpo feminino: "Da mesma maneira levantaram depois um templo a Diana, procurando uma forma de novo estilo [...], levando para lá a delicadeza da mulher e dispuseram em primeiro lugar o diâmetro da coluna segundo a oitava parte da sua altura, a fim de que ela apresentasse um aspecto mais elevado."
Justino Maciel considera essa leitura de Vitrúvio muito interessante, sublinhando que é fácil, como escreve o autor romano, ver nas volutas do capitel jónico "caracóis enrolados pendentes de uma cabeleira". E Vitrúvio continua: "Assim, lograram a invenção de dois tipos discriminados de colunas, uma viril, sem ornamento e de aparência simples, a outra, com a subtileza, o ornato e a proporção femininas."

Esta história sobre a origem das ordens, diz Justino Maciel, "é a demonstração do "teorema" de que o corpo é a medida de todas as coisas na arquitectura da Antiguidade Clássica". Só depois de ler Vitrúvio é que o historiador da arte percebeu que o umbigo é o centro do corpo e que medimos o mesmo com os braços abertos, de uma ponta à outra, do que em altura, como descreve o autor: "Acontece que o umbigo é, naturalmente, o centro do corpo; com efeito, se um homem se puser deitado de costas com as mãos e os pés estendidos e colocarmos um centro de compasso no seu umbigo, descrevendo uma circunferência, serão tocados pela linha curva os dedos de qualquer uma das mãos ou dos pés."

E Justino Maciel aponta para o desenho do Homem Bem Configurado, uma das quase 80 ilustrações que acompanham o livro, feitas por Thomas Noble Howe para a edição da Cambridge University Press e que a edição portuguesa volta a publicar, porque os desenhos originais de Vitrúvio desapareceram. "A maior parte das pessoas que vê este desenho pensa que é de Leonardo da Vinci", afirma Justino Maciel, uma vez que o tratado de Vitrúvio foi redescoberto no Renascimento, altura em que se fizeram as primeiras traduções. Uma delas foi encomendada por D. João III ao matemático e cosmógrafo Pedro Nunes, mas nunca foi publicada e não há a certeza de ter sido realizada.

A tradução dos dez livros que compõem o tratado de arquitectura de Vitrúvio começou a ser feita em 1986, altura em que Justino Maciel se tornou assistente do Departamento de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Tinha de dar seminários aos alunos do mestrado em História da Arte e pensou que era importante pô-los em confronto com o texto clássico: "Vitrúvio, escrito ainda antes de Cristo, é o texto fundamental como fonte da arquitectura das ordens, dos edifícios públicos e privados, do urbanismo."

Primeiro dicionário vitruviano

O que sabemos da Antiguidade Clássica, diz o professor, vem, sobretudo, dos textos de divulgação ou ensaio histórico, escritos entre o século XIX e XXI: "É raríssima a investigação directamente sobre os textos clássicos, gregos ou latinos, mesmo traduzidos. Só podemos falar do texto com total segurança se o lermos na sua língua original."

Para fazer a tradução do latim, Justino Maciel apoiou-se principalmente no manuscrito mais antigo até hoje conhecido, o chamado "Harleianus", datado do século IX e guardado no Museu Britânico, em Londres. O historiador seguiu a edição de F. Granger (1931-34), mas sempre que necessário recorreu a outros manuscritos, nomeadamente o W e V, guardados na Biblioteca Apostólica do Vaticano e editados pela Collection des Universités de France.

"Uma edição de Vitrúvio nunca se esgota, porque cada termo técnico levanta questões. Há palavras que só Vitrúvio é que usa. É uma arqueologia do texto." Sempre que há um termo técnico, Justino Maciel optou por colocar em nota de rodapé a palavra original em latim e defini-la, construindo um primeiro dicionário português dos termos vitruvianos. "É uma forma de contornar o facto de a edição não ser bilingue e de ir ao encontro do destinatário principal, pessoas sem formação clássica, que não sabem latim."

No tratado de Vitrúvio, quase tudo o que é arquitectura das ordens é ainda grego, apesar de o autor dizer que no seu tempo estava a ensaiar vários capitéis novos, como os da ordem toscana. "Nas termas, nos teatros, já contrapõe o costume grego ao romano. Em grande parte, o teatro romano deve a Vitrúvio a sua forma última. É natural que houvesse outros contributos, outras propostas, mas a leitura de Vitrúvio foi a única do período clássico que chegou até nós e quando se olha para o teatro romano é possível encontrar as propostas de Vitrúvio." Por exemplo, o pórtico, a colunata coberta, atrás da cena, é exclusivamente romano: "Não existe no teatro grego e Vitrúvio trata-o em pormenor. Em alguns casos, tem o mesmo tamanho que o próprio teatro. Em tempos de paz servia para abrigar da chuva, em tempo de guerra, de cerco, para armazenar madeira, o combustível." Uma novidade, portanto, com impacto no desenho da cidade.

A razão da natureza

O urbanismo de Vitrúvio é também já orientado, mostrando a racionalidade de viver de acordo com a natureza: "Há dois tipos de urbanismo na Antiguidade Clássica: o hipodâmico, ortogonal; e o etrusco-itálico, que é também ortogonal mas tem a particularidade de ser orientado, segundo as linhas do cardo e do decomano. A linha decomana, este-oeste, obtinha-se logo de manhã pelo nascer do sol." Por isso, acrescenta Justino Maciel, através da linha decomana, é possível saber em que altura do ano a cidade foi fundada.

Entre as cidades portuguesas do Império Romano, não há nenhuma fundada pelos romanos, diz o autor da tradução, mas em Conímbriga ou em Évora é possível encontrar nos monumentos a aplicação do módulo vitruviano, "surpreendendo-nos por vezes a evidência da sua presença, mesmo em realizações afastadas do centro do Império", escreve Justino Maciel na introdução.
O autor da tradução diz que nasceu no campo, no tempo dos carros de bois, do arado, das lamparinas de azeite, de uma vivência à romana. "Tive uma certa introdução na infância à terminologia artesanal. Na história da arte, só conhecendo a linguagem dos pedreiros e dos carpinteiros é que conseguimos hoje dar certos nomes às coisas, como o chedeiro, a caixa do carro de bois." Arquitecto, aliás, quer dizer carpinteiro principal: "Esse nome ficou e ninguém hoje imagina isso."
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Vitrúvio em português

Todo o Vitrúvio em português
Isabel Salema

O sonho de um arquitecto no mundo greco-romano - a glória de erguer uma cidade - foi alcançado por Dinócrates ao construir Alexandria. E como é que o arquitecto grego conseguiu que Alexandre Magno lhe encomendasse o plano de construir uma nova cidade no Egipto? "Era, com efeito, de grande estatura, de belo rosto e de presença digna. Confiado, pois, nestes dons da natureza, deixou as vestes nos seus aposentos, ungiu o corpo com óleo, coroou a cabeça com um ramo de choupo, cobriu o ombro esquerdo com uma pele de leão e, levando na mão direita uma clava, entrou no tribunal do rei, quando este administrava justiça." O espectáculo de Dinócrates vestido de Hércules "despertou a atenção de todos" e Alexandre Magno perguntou quem era. O arquitecto respondeu: "Sou Dinócrates, arquitecto macedónio, que trago ideias e projectos dignos da tua celebridade."

Parece uma história demasiado boa para ser verdade. Mas Dinócrates não é uma invenção do escritor romano Vitrúvio, porque o seu nome já aparece num papiro de finais do século II a.C., antes de o tratado de arquitectura ter sido escrito. O episódio em redor da construção de Alexandria foi provavelmente bebido noutra fonte greco-romana. "Pode ser verdade ou não.

Algumas das histórias que conta terão sido lidas em textos gregos, helenísticos e mesmo romanos. Vitrúvio cita vários autores, mas a maior parte destes textos desapareceu", diz Justino Maciel, historiador da arte e autor da tradução do "Da Arquitectura" de Vitrúvio, a primeira feita em Portugal directamente do latim, uma obra escrita no século I antes da nossa era e agora editada pela IST-Press, a editora universitária do Instituto Superior Técnico.

É o próprio Vitrúvio que fala das suas fontes. Por exemplo, no sétimo dos dez "Volumen" do tratado - o que corresponde a um rolo no texto romano -, quando o escritor aborda os autores gregos e romanos de livros de arquitectura: "Eu recolhi, de entre os seus comentários, o que me pareceu mais útil para estes apontamentos, havendo muitos livros publicados pelos Gregos neste campo, sendo poucos os que existem entre nós."

Antes de Vitrúvio e dos seus contemporâneos, sobreviveram pequenos textos que abordam algumas questões de construção, como é o caso das construções rurais de Varrão, um autor romano citado por Vitrúvio. Mas o "Da Arquitectura" é o único tratado de arquitectura da Antiguidade Clássica a chegar até hoje. "Na antiguidade tardia, há os tratados de Faventino e de Paládio (não confundir com o do Renascimento), que seguem de perto o de Vitrúvio e são muito mais pequenos."
Por isso, na nota de apresentação da edição da IST-Press, o historiador da arte Paulo Varela Gomes diz que a publicação do tratado "representa um acontecimento histórico para as culturas da arquitectura e da engenharia em Portugal e uma iniciativa cultural de grande relevo".

Um tratado para Augusto

O episódio do belo Dinócrates vestido de Hércules serve também a Vitrúvio para falar de si: "A mim, porém, ó Imperador, não ofereceu a natureza boa aparência, a idade desfeou-me o rosto e a doença me subtraiu as forças. E porque estou privado destes apoios, espero conseguir a tua recomendação através dos méritos da ciência e através destes escritos." O imperador é Augusto, para quem este engenheiro militar e arquitecto escreveu o tratado, já reformado, depois de uma vida ao serviço do Exército romano como engenheiro militar.

Apesar de o tratado "Da Arquitectura", escrito provavelmente entre 35 e 20 a.C., ser uma obra muito pragmática, os heróis divinizados não estão ausentes e emergem para explicar a origem da ordem dórica, a primeira e a mais simples das ordens arquitectónicas: "Doro, filho de Heleno e da ninfa das águas, Ftia, reinou sobre a Acaia e todo o Peloponeso e edificou em Argos, cidade antiga, o lugar sagrado de Juno, casualmente deste estilo, em forma de templo."

Mas o sistema proporcional de medidas da ordem dórica, que caracteriza todo um edifício, surgiria mais tarde, dando Vitrúvio uma explicação muito mais prática. Foram os gregos que ao fundar as suas colónias na Ásia encontraram uma metodologia, relacionando a ordem dórica com o corpo masculino, a partir da planta do pé: "Tendo descoberto que o pé correspondia no homem à sexta parte da sua estatura, transferiram o mesmo para a coluna e, qualquer que fosse o diâmetro da base do fuste, elevaram-no seis vezes em altura incluindo o capitel. Deste modo, a coluna dórica começou a mostrar nos edifícios a proporção, a solidez e a elegância de um corpo viril."

O mesmo aconteceu com a ordem jónica, mas desta vez com o corpo feminino: "Da mesma maneira levantaram depois um templo a Diana, procurando uma forma de novo estilo [...], levando para lá a delicadeza da mulher e dispuseram em primeiro lugar o diâmetro da coluna segundo a oitava parte da sua altura, a fim de que ela apresentasse um aspecto mais elevado."
Justino Maciel considera essa leitura de Vitrúvio muito interessante, sublinhando que é fácil, como escreve o autor romano, ver nas volutas do capitel jónico "caracóis enrolados pendentes de uma cabeleira". E Vitrúvio continua: "Assim, lograram a invenção de dois tipos discriminados de colunas, uma viril, sem ornamento e de aparência simples, a outra, com a subtileza, o ornato e a proporção femininas."

Esta história sobre a origem das ordens, diz Justino Maciel, "é a demonstração do "teorema" de que o corpo é a medida de todas as coisas na arquitectura da Antiguidade Clássica". Só depois de ler Vitrúvio é que o historiador da arte percebeu que o umbigo é o centro do corpo e que medimos o mesmo com os braços abertos, de uma ponta à outra, do que em altura, como descreve o autor: "Acontece que o umbigo é, naturalmente, o centro do corpo; com efeito, se um homem se puser deitado de costas com as mãos e os pés estendidos e colocarmos um centro de compasso no seu umbigo, descrevendo uma circunferência, serão tocados pela linha curva os dedos de qualquer uma das mãos ou dos pés."

E Justino Maciel aponta para o desenho do Homem Bem Configurado, uma das quase 80 ilustrações que acompanham o livro, feitas por Thomas Noble Howe para a edição da Cambridge University Press e que a edição portuguesa volta a publicar, porque os desenhos originais de Vitrúvio desapareceram. "A maior parte das pessoas que vê este desenho pensa que é de Leonardo da Vinci", afirma Justino Maciel, uma vez que o tratado de Vitrúvio foi redescoberto no Renascimento, altura em que se fizeram as primeiras traduções. Uma delas foi encomendada por D. João III ao matemático e cosmógrafo Pedro Nunes, mas nunca foi publicada e não há a certeza de ter sido realizada.

A tradução dos dez livros que compõem o tratado de arquitectura de Vitrúvio começou a ser feita em 1986, altura em que Justino Maciel se tornou assistente do Departamento de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Tinha de dar seminários aos alunos do mestrado em História da Arte e pensou que era importante pô-los em confronto com o texto clássico: "Vitrúvio, escrito ainda antes de Cristo, é o texto fundamental como fonte da arquitectura das ordens, dos edifícios públicos e privados, do urbanismo."

Primeiro dicionário vitruviano

O que sabemos da Antiguidade Clássica, diz o professor, vem, sobretudo, dos textos de divulgação ou ensaio histórico, escritos entre o século XIX e XXI: "É raríssima a investigação directamente sobre os textos clássicos, gregos ou latinos, mesmo traduzidos. Só podemos falar do texto com total segurança se o lermos na sua língua original."

Para fazer a tradução do latim, Justino Maciel apoiou-se principalmente no manuscrito mais antigo até hoje conhecido, o chamado "Harleianus", datado do século IX e guardado no Museu Britânico, em Londres. O historiador seguiu a edição de F. Granger (1931-34), mas sempre que necessário recorreu a outros manuscritos, nomeadamente o W e V, guardados na Biblioteca Apostólica do Vaticano e editados pela Collection des Universités de France.

"Uma edição de Vitrúvio nunca se esgota, porque cada termo técnico levanta questões. Há palavras que só Vitrúvio é que usa. É uma arqueologia do texto." Sempre que há um termo técnico, Justino Maciel optou por colocar em nota de rodapé a palavra original em latim e defini-la, construindo um primeiro dicionário português dos termos vitruvianos. "É uma forma de contornar o facto de a edição não ser bilingue e de ir ao encontro do destinatário principal, pessoas sem formação clássica, que não sabem latim."

No tratado de Vitrúvio, quase tudo o que é arquitectura das ordens é ainda grego, apesar de o autor dizer que no seu tempo estava a ensaiar vários capitéis novos, como os da ordem toscana. "Nas termas, nos teatros, já contrapõe o costume grego ao romano. Em grande parte, o teatro romano deve a Vitrúvio a sua forma última. É natural que houvesse outros contributos, outras propostas, mas a leitura de Vitrúvio foi a única do período clássico que chegou até nós e quando se olha para o teatro romano é possível encontrar as propostas de Vitrúvio." Por exemplo, o pórtico, a colunata coberta, atrás da cena, é exclusivamente romano: "Não existe no teatro grego e Vitrúvio trata-o em pormenor. Em alguns casos, tem o mesmo tamanho que o próprio teatro. Em tempos de paz servia para abrigar da chuva, em tempo de guerra, de cerco, para armazenar madeira, o combustível." Uma novidade, portanto, com impacto no desenho da cidade.

A razão da natureza

O urbanismo de Vitrúvio é também já orientado, mostrando a racionalidade de viver de acordo com a natureza: "Há dois tipos de urbanismo na Antiguidade Clássica: o hipodâmico, ortogonal; e o etrusco-itálico, que é também ortogonal mas tem a particularidade de ser orientado, segundo as linhas do cardo e do decomano. A linha decomana, este-oeste, obtinha-se logo de manhã pelo nascer do sol." Por isso, acrescenta Justino Maciel, através da linha decomana, é possível saber em que altura do ano a cidade foi fundada.

Entre as cidades portuguesas do Império Romano, não há nenhuma fundada pelos romanos, diz o autor da tradução, mas em Conímbriga ou em Évora é possível encontrar nos monumentos a aplicação do módulo vitruviano, "surpreendendo-nos por vezes a evidência da sua presença, mesmo em realizações afastadas do centro do Império", escreve Justino Maciel na introdução.
O autor da tradução diz que nasceu no campo, no tempo dos carros de bois, do arado, das lamparinas de azeite, de uma vivência à romana. "Tive uma certa introdução na infância à terminologia artesanal. Na história da arte, só conhecendo a linguagem dos pedreiros e dos carpinteiros é que conseguimos hoje dar certos nomes às coisas, como o chedeiro, a caixa do carro de bois." Arquitecto, aliás, quer dizer carpinteiro principal: "Esse nome ficou e ninguém hoje imagina isso."
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Monday, June 12, 2006

Arrastado

Do Público de hoje.

O "pseudo-arrastão" de Carcavelos, uma verdade por repor
Rui Marques

O erro mais grave que perdura no tempo é o erro de não corrigir os erros. E aí estaremos perante uma das maiores dificuldades da cultura jornalística dos nossos dias e uma das ameaças que impende sobre a credibilização desta actividade

Um ano depois dos acontecimentos na praia de Carcavelos, aos quais se convencionou chamar "arrastão", e após todos os relatórios e esclarecimentos públicos permanece, para muitos, a convicção que, no dia 10 de Junho de 2005, se realizou um gigantesco assalto em Carcavelos, conduzido por 500 jovens negros, vindos de bairros degradados.

O erro mediático em torno dos acontecimentos de Carcavelos foi grave. A partir de uma notícia falsa, reforçou os preconceitos e a desconfiança face a uma população de jovens descendentes de imigrantes africanos, consolidando o estigma já existente que os relaciona com a criminalidade.

Não se julgue, no entanto, que neste processo os culpados são só os jornalistas. A culpa reparte-se, ainda que em proporções diferentes, por todos nós: pelas fontes policiais e populares que induziram os jornalistas em erro; pelos jornalistas que foram difusores de uma notícia falsa que nunca desmentiram com o mesmo destaque, pelos políticos que a comentaram sem cuidar de a verificar convenientemente e, finalmente, pelos espectadores e pelos leitores que ainda hoje continuam a acreditar no "pseudo-arrastão".

Mas, nesta ocasião, importa focar a reflexão sobre a responsabilidade dos jornalistas.
Coloca-se, neste processo, entre outras questões, uma relevante discussão da relação dos jornalistas com as fontes. Segundo a LUSA, a fonte da qual partiu a informação para a construção da notícia foi a PSP. Colocar-se-ia, desde logo, a necessidade de exercer sobre a informação um sentido crítico de avaliação da credibilidade e da consistência. Admite-se que nos "directos", em cima do acontecimento, não existissem condições de distanciamento e de reflexão crítica perante tal informação. Mas já é mais difícil explicar que, nos dias seguintes, quase ninguém (só A Capital o vem a fazer em 16 de Junho, com o artigo "A história de um arrastão que nunca existiu") tenha questionado esse facto, sobretudo quando um acontecimento de tal magnitude gera somente quatro detenções e dois feridos (todas resultantes de agressões a agentes da autoridade ou de acções destes) e uma (!) queixa de furto.

No dia 16 de Junho, a mesma fonte vem corrigir os dados iniciais dizendo que "de um grande grupo de 400 ou 500 pessoas só 30 ou 40 praticaram ilícitos". E mesmo esse suposto número de participantes continuava a não ser consistente com uma só queixa apresentada. Obviamente dá-se, neste contexto, uma situação jornalisticamente relevante: uma fonte reconhece que errou (sublinhe-se, aliás, que é o único protagonista neste processo que reconhece o erro e por ele se penitencia). Logo, o jornalista/meio de comunicação deveria, com igual destaque da notícia anterior, comunicar o erro aos seus leitores e, se possível, justificá-lo, bem como elaborar um pedido de desculpas, em primeiro lugar, aos visados, mas também ao público em geral. Este desmentido ocupava, nalguns casos, uma escassa coluna, não tendo qualquer destaque especial e pedido de desculpas nunca houve.

Com efeito, ao contrário do que depois se quis fazer crer, este erro não é pouco importante. Nesses acontecimentos, foi factor central de potencial de noticiabilidade, a dimensão ímpar a nível nacional, europeu e mesmo mundial, de um assalto em massa, protagonizado, segundo as notícias, por 500 jovens, organizados para tal. Espantosamente ninguém questionou, um segundo que fosse, a credibilidade desse número, avançado pelas primeiras notícias. A construção do lead, a repetição dos destaques em rodapé nas televisões, a assunção a-crítica deste suposto facto - porque "vi na televisão" - consolidaram definitivamente este "facto".
Como bem sublinha Ramonet, na sua Tirania da Comunicação, "a repetição substitui a verificação". Um pega, outro repete e o terceiro acredita. O rigor, a objectividade, o cruzamento de várias fontes, bem como o simples bom-senso e a perspicácia deveriam, no mínimo, levar-nos a questionar se é consistente e credível a informação de que se tratou de uma operação organizada por 500 (!) jovens. Ninguém pareceu incomodar-se com uma preocupação da procura aprofundada da verdade. Ao invés, o espaço ao boato ou ao rumor teve tempo de antena, protagonizado pela vox populi.

Como segundo erro particularmente grave, a utilização abusiva, ainda que involuntária, de imagens que foram apresentadas como sendo do "arrastão". A PSP, segundo relato da LUSA, esclarecia em 16 de Junho de 2005: "Muitos jovens que apareceram em imagens televisivas e fotográficas a correr na praia de Carcavelos, naquele dia, não eram assaltantes, mas tão só jovens que fugiam com os seus próprios haveres". Ou seja, operou-se uma manipulação gravíssima através das fotografias publicadas, fazendo crer que se tratava de imagens do arrastão, quando, segundo este responsável da PSP, eram pessoas a fugir da chegada da polícia. Como foi isto possível? Hoje é conhecida a autoria das referidas fotos e respectivas legendas: não é de um fotógrafo-jornalista, obrigado a um código de ética, mas sim de um "cidadão-jornalista" que as produziu e legendou como quis, fornecendo-as a meios que as consumiram sem cuidado.

Esse facto deveria merecer uma reflexão séria sobre a credibilidade do "cidadão-jornalista".
Mas o erro mais grave que perdura no tempo é o erro de não corrigir os erros. E aí estaremos perante uma das maiores dificuldades da cultura jornalística dos nossos dias e uma das ameaças que impende sobre a credibilização desta actividade.

Importa, como já foi dito, reforçar que se deve recusar a visão simplista de culpar os jornalistas de tudo. É uma leitura demagógica e injusta. Muitos são os condicionalismos que limitam o trabalho jornalístico (tempo, espaço, fontes, concorrência...) e, nesse contexto adverso, muitos são os jornalistas que fazem um trabalho sério e profissional, no qual não estão, no entanto, isentos de erro. E se o jornalismo hoje é melhor do que já foi, isso só nos torna mais exigentes, para que melhore ainda mais. É, aliás, a sua capacidade de autocrítica e de auto-regulação que pode prestigiar e continuar a dar-lhe um papel central nas democracias contemporâneas. Ao invés, se essa capacidade se anula e se se escuda numa lógica defensiva corporativa que não reconhece erros, os jornalistas e os meios deixam de cumprir a sua missão. E sobre o "pseudo-arrastão" ainda não os ouvimos pedir desculpa.

Docente de Ciências da Comunicação da Universidade Católica Portuguesa. Alto Comissário para a imigração e minorias étnicas.

Friday, June 09, 2006

Cody's RIP

From the Berkeleyan:

Cody's final chapter
Like a book they didn't want to end, faculty recall the glory days of
the historic Telegraph Avenue bookstore

By Wendy Edelstein, Public Affairs | 31 May 2006

The demise of a retail store rarely elicits an outpouring of sadness
from its community, but when Andy Ross announced last month that he
would be closing Cody's Books on Telegraph Avenue after years of
diminishing sales, Berkeley and Bay Area book lovers responded with
shock and grief.

The famously independent bookstore has been an intellectual and
cultural touchstone in Berkeley for nearly five decades, hosting
readings by world-renowned writers and carrying academic tomes not
typically found in other bookstores.

Cody's on Telegraph "was the store I loved," said Ross in a recent
interview, stopping for the first of several times to stifle tears.
It's "an incredible artifact, independent of the university but part
of the intellectual soup that is Berkeley," and its closing represents
not just "a tragedy for my family and myself," he said, but a huge
blow to the community and the campus.

A kind of postgame analysis has preoccupied many seeking to understand
why Cody's flagship store is closing its doors. For his part, Ross has
been surprised that local media have been quick to pin blame on the
city of Berkeley and the university for neglecting Telegraph Avenue.
While Telegraph "is not the shopping venue it once was," Ross
acknowledges, he doesn't cite the decline of the district as the sole
reason for all the store's woes and its million-dollar revenue loss
over the past five years. Instead he pinpoints the dramatic change in
shopping trends that has occurred thanks to the Internet. Although
Cody's Books does have an online presence, it's a diminutive David to
Amazon.com's Goliath.

Whatever the mix of reasons leading to the store's closing, the
announcement galvanized the Berkeley City Council to approve Mayor Tom
Bates's plan to clean up Telegraph Avenue beginning as early as this
summer. Vacancies in 23 of the shopping district's storefronts and a
30-percent decline in sales-tax revenues prompted the plan, which will
add more police, streetlights, and public-works crews to the area,
increase mental-health and social services to the homeless people on
the street, and simplify the city's permit process for business
owners.

The improvements, if they materialize, will come too late to save
Cody's on Telegraph. As testimony to its importance to the university,
a number of faculty members spoke with the Berkeleyan about their
memories of the bookstore that Fred Cody founded half a century ago.

A bookstore apart

Robert Tracy, professor emeritus of English, recalls that some of the
problems people associate with Telegraph Avenue today were topics of
discussion when the current bookstore was constructed. (The first
Cody's Books was a small store on Euclid Ave., followed by a bigger
venue on Telegraph where Moe's Books is now located). Tracy recalls
that, in spite of the area's problems, Fred Cody was "devoted to
making the Avenue work and committed himself to staying by building
the new store in 1965."

Even during the '60s many businesses were leaving the Avenue, recalls
Tracy. "Cody had a real belief that a bookstore was a civilizing and
educational institution — and the presence of Cody's in Berkeley had a
positive cultural and perhaps even moral benefit."

Ben Bagdikian, former dean of the Graduate School of Journalism,
recalls that during the Free Speech Movement protests of the '60s,
Cody's provided "a safe harbor for people in danger from the troops
and the hostility of Gov. [Ronald] Reagan."

Bagdikian, who wrote his landmark and prescient book The New Media
Monopoly back in 1983, read several times at Cody's and frequently
attended other authors' readings. "The audience there was literate,
very attentive, and even aggressive in its questions and knowledge,"
he says. Those readings were "a wonderful introduction to why Berkeley
is a unique place in the U.S., if not the world."

Robin Lakoff, professor of linguistics, has read before Cody's
audiences several times. She remembers a reading she gave there in
1990 from her book Talking Power: The Politics of Language, in which
she took the first Bush administration to task at a time when the
president's popularity ratings were high, after the first Gulf War. An
audience member asked her, "Don't you think in speaking critically
about Reagan and Bush that you're preaching to the converted?"

The question gave Lakoff an insight into "why it's so wonderful and
dangerous to live in Berkeley. It's us against the world — which is
very comforting and inaccurate. If you spend your life living in
Berkeley, you're at a loss to explain when something like either one
of the Bush administrations happens." With its "enthusiastic,
sympathetic audiences," Cody's has been "an intellectual safe house
against the encroachments of people who didn't share our particular
Berkeley point of view."

Literary lights and rose petals

Cody's provided a stage for readings and author/audience interaction
that was unlikely to occur in other bookstores, certainly not many of
those outside the Bay Area. Professor of Asian American Studies Elaine
Kim remembers trying to cram her way into the bookstore during a
standing-room-only reading in the mid-'80s given by Barbara Christian,
the first black woman to earn tenure at Berkeley. The capacity crowd
was flowing down the stairs, she says, and kept her from getting close
to the upstairs room where Christian was reading.

Poetry Flash editor Richard Silberg, who teaches courses at UC
Extension, has coordinated that publication's reading series at Cody's
for more than two decades. Silberg recalls when Norman O. Brown read
at the bookstore in the early '90s. Brown was publicizing a re-issue
of his 1966 classic, Love's Body, a work that drew on writings by
Freud and Nietzsche to expand ideas of the social body and encourage
people to free their inhibitions. In the middle of Brown's reading,
three young women took off their clothes and (in Silberg's words)
"brought out all the energies of the Berkeley unconscious. They did so
"very quietly, very decorously, and were wonderfully demure in their
tribute," he remembers. "It was an uninhibited, unrepressed reading."

Maxine Hong Kingston, an emeritus senior lecturer in English, recalls
another tribute, one that occurred in 1966 when Anaïs Nin made a
much-anticipated appearance for a publication party celebrating the
first volume of her memoirs. The petite author wore a long ivory gown,
and when she moved into the middle of the room to speak, Lawrence
Ferlinghetti stepped behind her, raised a pail over her head, and
showered her with red rose petals. "I think that was the most
wonderful thing that happened at Cody's," says Kingston, who has often
recalled that image. Kingston —whose books include The Woman Warrior,
Tripmaster Monkey, and, most recently, The Fifth Book of Peace — says
she is gratified to have read from every one of her books at Cody's.

Defying expectations at every turn

After covering post-apartheid events for The Village Voice, Adam
Hochschild, a lecturer in the Graduate School of Journalism, was
invited to speak at a 1994 event the bookstore held in honor of the
first democratic election in South Africa, which resulted in Nelson
Mandela becoming president. "What other bookstore," Hochschild asks
rhetorically, "would hold a public event to celebrate a politically
significant moment for a generation of people for whom the
anti-apartheid movement had been very important?"

Professor of Anthropology Nancy Scheper-Hughes organized another
apartheid-related event, for South African Constitutional Court
Justice Albie Sachs, a humanitarian who lost an arm and eye to a car
bomb, courtesy of that country's former, repressive regime.
Scheper-Hughes, who describes Sachs as "a rather proper and
no-nonsense white South African radical," recalls that she let the
author know he might receive "some odd questions from the floor, as
Cody's was a very democratic place."

After Scheper-Hughes gave Sachs a flowery introduction, the activist
embarrassed her by telling the crowd, "Nancy Scheper-Hughes warned me
that there might be a few oddballs in the audience, but you all look
just fine." Scheper-Hughes' chagrin was short-lived: "The first
question put to Albie was a left-ball from outer space. I had my
revenge as Albie tried his best to respond."

Kristin Luker, a professor of sociology and law who also remembers
when Fred Cody built the current store on Telegraph Avenue, holds most
dear her memories of enlisting help from staffers behind Cody's
information desk: "They were unlike the employees at other bookstores
— they were passionate book lovers and very nice. Many times I
remember one of them would look up a book for me, then say, 'I don't
think this is the book you really want. I think you want this other
book by so-and-so.'"

Such experiences jibe with Elaine Kim's assessment, one she has shared
each fall with her students: "Cody's Books is the best bookstore west
of the Mississippi," she would tell them. Even beyond the confines
(spruced-up or otherwise) of Telegraph Avenue, it will likely be
remembered as such for years to come.