Wednesday, September 13, 2006

A dificuldade em entrar no futuro

Do Público de hoje:

A dificuldade em entrar no futuro
Manuel Queiró

1. Já lá vão cinco anos e ainda não nos habituámos. Muita gente, quiçá a maioria, gostaria de acreditar num regresso à "normalidade", a um mundo sem terrorismo, sem medidas de segurança cada vez mais constrangedoras, sem ameaças desconhecidas pela frente. Mas o que vai ficando evidente é que, se essa esperança for mesmo para concretizar, ela demorará anos e anos a tornar-se possível. Para já o que temos é a comunidade internacional num penoso processo de adaptação à realidade exposta pela primeira vez em 11 de Setembro de 2001. E a primeira dificuldade continua porventura ainda por ultrapassar, a do comum entendimento sobre a natureza e os objectivos do novo inimigo que surgiu pela frente.

Desde logo o papel do fundamentalismo islâmico. O que pareceu à partida a irrupção de um fenómeno de tipo novo à escala global, de certa forma uma consequência da mundialização e do fácil acesso à tecnologia e às suas possibilidades assassinas, depressa se mostrou como algo de mais limitado. O novo terrorismo é global apenas porque não é possível contê-lo dentro de nenhuma fronteira, mas não o é nos seus centros de produção. Ele tem uma origem localizada e uma ideologia precisa, a que a morte geral de todas as outras conferiu um vigor de substituição. Uma civilização, que é ao mesmo tempo uma cultura e uma religião, desenvolveu dentro de si uma facção extremamente radical e violenta. Longinquamente assente em frustrações históricas e recentemente em humilhações circunstanciais, o certo é que ela cresceu e acumulou um potencial agressivo de intensidade tal que o seu ímpeto está muito longe de se esgotar.

A sequência que sucedeu à destruição de três mil vidas em Nova Iorque - Bali, Casablanca, Madrid, Londres, o recente atentado frustrado em múltiplos aviões, os muitos que foram impedidos ainda em fase de preparação - parece seguir o mesmo padrão: células de radicais islâmicos actuando de forma descentralizada mas em obediência ao mesmo comando remoto, a acreditar nas investigações e na detenção de alguns dos seus cérebros. Mais significativamente nascem células onde quer que as comunidades islâmicas tenham uma dimensão suficiente, com o fito de se colocarem ao serviço do mesmo comando e do mesmo propósito. Espantosamente, ou não, não faltam candidatos fascinados por uma ideologia que, embora de invocação religiosa, não deixa de ser extremista e demencial. Uma versão de Deus que ordena e premeia o assassínio em massa supostamente para impor na terra a obediência sem restrições ao seu poder.

A crescente percepção da natureza do fenómeno não pode deixar de ter consequências. Uma das quais será a aceitação de que o combate contra o terrorismo é também cultural e político. Outra é a de que a Europa está necessariamente na linha da frente desse combate. Por fatalidade geográfica e como consequência histórica. A globalização precipitou uma angústia e um medo no mundo islâmico em que o contágio da liberdade é hoje mais visto como ameaça do que esperança. E tem-se naturalmente mais medo dos vizinhos, sobretudo quando são ricos e bem sucedidos. O medo incide nas diferenças e incita ao proselitismo, e a jihad é o mais violento dos proselitismos. A sujeição pela ameaça é justamente um corolário desse princípio, e é a ela que a cultura europeia mais dificuldade demonstra em responder.

2. A facilidade com que a tese da culpa americana floresceu entre nós é sintomática dessa hesitação europeia. Os Estados Unidos consideram-se em guerra há cinco anos, mas na Europa ninguém ousa essa linguagem. Mesmo depois dos atentados no seu solo, e das inúmeras acções policiais que já preveniram a execução de outros. Há sempre quem prefira imaginar uma causa política plausível para os actos de terror e recomende a adopção da correcção correspondente. É melhor culpar Aznar ou Blair do que aceitar o repto da agressão - os países europeus podem sempre derrubar os seus governos ou substituir os líderes, virar as costas aos americanos, acusá-los, e esperar por uma "paz separada" que lhes permita continuar como dantes e até fazer comércio lucrativo com os países mais suspeitos. Conferindo assim uma consequência útil ao terrorismo e incitando os seus autores à continuação.

Isso é uma caricatura, dirão alguns, porque a desconfiança com o belicismo americano tem muito por onde se justificar e não pode ser confundida com o extremismo antiamericano dos órfãos da guerra fria. Talvez. Mas quando alguns líderes reconhecidos da comunidade islâmica de Londres se referiam ainda há um mês aos atentados falhados nos aviões argumentando que, "se a política externa britânica fosse diferente, talvez fosse mais fácil" controlar os jovens da sua comunidade, estamos sem disfarces na presença pioneira de uma "suave" chantagem do terror sobre uma democracia. Digo pioneira para não ofender alguns socialistas mais sensíveis falando das últimas eleições espanholas... Seja como for, basta pensar na "crise das caricaturas" para reconhecer que ela nunca ocorreria com um jornal ou país de outro continente. Ou na tolerância com a Bósnia, de longe o maior santuário da Al-Qaeda fora do Paquistão e verdadeira placa giratória dos seus operacionais. No seio do extremismo islâmico já se assumiu que a Europa é o único continente que está sob vigilância e sob pressão. E cada cedência não faz mais do que acentuar essa realidade.

Mas tudo tem um lado positivo e não há mal que sempre dure. O combate político e cultural decorre também entre nós mesmos, e a facção do apaziguamento vai a pouco e pouco cedendo terreno. Até porque se ela tem a seu favor o medo (ou o "realismo", conforme a opinião de cada um), os seus adversários têm a seu favor o tempo e a necessidade. Por mim prevejo o advento de uma consciência europeia diferente, mais adepta da firmeza e da colaboração transatlântica. A disponibilidade demonstrada para a gestão do conflito entre Israel e o Hezbollah mostra que no Velho Continente se começa a aceitar que os EUA não podem continuar a ser o odiado polícia ao nosso serviço.

P.S. - O pacto sobre a justiça entre PS e PSD tem muito que se lhe diga. Fosse ele apenas um entendimento entre dois partidos livres e fundamentais sobre uma questão momentosa para o interesse público e apenas restaria aplaudir. Só que a presença em força do Governo na sua assinatura lança sobre ele uma sombra que inevitavelmente pesará no debate parlamentar. Mas há que reconhecer também a vitória estratégica, porventura ainda apenas simbólica, do líder do PSD. Bastar pensar nas antigas aspirações sociais-democratas a uma normalização bipartidária do regime para admitir que Marques Mendes firmou a sua credibilidade interna e externa para os próximos anos. Há que contar com ele.

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